Se o
mundo fosse mesmo acabar em 2012, como dizem as profecias apocalípticas, e
somente nos fosse possível deixar um único retrato como vestígio da aparência daquilo
que foi o “ser humano”, uma síntese da nossa figura, que imagem escolheríamos? Qual
é a imagem que lhe vem à cabeça quando pensa no “ser humano”?
Esta pergunta surgiu-me ao ver o livro de Portraits do fotógrafo americano Steve McCurry e observar a diversidade visual humana. Retomando Aristóteles, Ortega y Gasset diz que as coisas diferentes se diferenciam justamente por aquilo em que se assemelham, ou seja, por uma dada característica comum. “É porque os corpos têm todos cor que notamos que um tem uma cor diferente dos outros”. Mas para perceber a diferença é preciso ver os diferentes corpos. E porque é arbitrário estar sempre a mostrar as mesmas narrativas e os mesmos tipos como se fossem universais; e porque seria arbitrário escolher uma única imagem que tentasse abranger toda a diversidade humana, que eu não deixaria retrato nenhum. E que o resto do universo ficasse a especular que nós tínhamos penas, cauda, uma cabeça mínima, um polegar opositor e apenas mais outro dedo.
Todo
mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta. Todo mundo tem razão e
vence sempre na hora certa. Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há
derrota. Todo homem tem voz grossa e tem pau grande. E é maior do que o meu, do
que o seu, do que o do Pedro Sá . Todo mundo é referência e se compara só pra ver
que é melhor. Todo mundo é mais bonito do que eu, mas eu sou mais que todos. Todo
mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar. Todos querem mas não podem
admitir a coexistência do orgulho e do amor porque: Eu sou melhor que você. Boa
viagem. Eu sou melhor que você, mas por favor fique comigo que eu não tenho mais
ninguém.Todo mundo diz que sabe, e quando diz que não sabe é porque é charmoso
não saber algo que todas as pessoas já sabem como é. Todo mundo é especial, é
original, é o que todos queriam ser. Não basta ser inteligente, tem que ser
mais do que o outro pra ele te reconhecer. Todo mundo ganha grana pra dizer que
ela não vale nada. Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada. Todos
querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer. Todas querem
vida fácil sem ser puta e com reputação. Se reprimem e começam a dizer: Eu sou
melhor que você. Eu sou melhor que você, mas por favor fique comigo que eu não
tenho mais ninguém!
Cinema Americano | Thaís Gulin
Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rockn'roll. Tão bomba atômica tão amedrontado tão burro tão desesperado.Tão raiva tão guerra tanto comando e adeus. Tão jeans tão centro tão cabeceira tão Deus. Tão indústria tão nosso tão falso tão Papai Noel. Tão Oscar tão triste tão chato tão homem Nobel. Tão hot dog tão câncer social tão narciso. Tão quadrado tão fundamental. Tão bom tão lindo tão livre tão Nova York. Tão grana tão macho tão western tão Ibope. Racistas paternalistas acionistas. Prefiro os nossos sambistas. A ponte de safena Hollywood e o sucesso. O cinema a Casa Branca a frigideira e o sucesso. A Barra da Tijuca Hollywood e o sucesso. Prefiro os nossos sambistas. Prefiro o poeta pálido anti-homem que ri e que chora.Que lê Rimbaud, Verlaine, que é frágil e que te adora. Que entende o triunfo da poesia sobre o futebol. Mas que joga sua pelada todo domingo debaixo do sol. Prefere ao invés de Slayer ouvir Caetano ouvir Mano Chao. Não que Slayer não seja legal e visceral. A expressão do desespero do macho americano é normal. É preciso mais que um soco pra se fazer um som um homem um filme. Esse medo da face fêmea dita por Cristo é natural. É preciso seu amor seu feminino seu suíngue. Pra ser bom de cama é preciso muito mais do que um pau grande. É preciso ser macho ser fêmea ser elegante. Prefiro os nossos sambistas.
Que
a fotografia é uma manipulação da realidade material, isto os teóricos e
críticos já o disseram. Contudo, esta realidade forjada pode atender, em certas
ocasiões, a um desejo de externalizar emoções realmente sinceras e tornar visíveis os sentimentos, evidenciando-os visualmente.
É bem verdade também que os sentimentos já nos dão certas pistas visuais. A paixão, por exemplo, deixa visíveis os seus sinais, independentemente
da engenhosidade fotográfica. Ora, se na semiótica médica, pele e olhos amarelados
revelam-se sinais de icterícia, na “semiótica do amor”, o brilho nos olhos e o ar
aluado são sinais de que o sujeito foi acometido pela paixão... Mas
tais sinais, para o ser apaixonado, podem não ser suficientes. Há quem queira representar de forma veemente
a paixão, eternizar a imagem do sentimento amoroso e a devoção ao ser amado. E
eis que a fotografia, com técnicas das mais primitivas às mais sofisticadas, é capaz
de tornar figurativo aquilo que é abstrato. E aí está uma bela fotografia que ilustra bem o amor, porque o essencial pode servisível aos olhos.
*** Eu
sei que aqueles que me conhecem vão dizer que este blog está a se tornar um lugar
muito romântico, e que isto não combina nada, nada comigo. Em minha defesa, só
tenho a dizer que o amor é assunto sério. Das ciências médicas à poética das
ciências, o amor é um assunto seríssimo!
Ao
ler o “Livro do Amor”, da psicanalista Regina Navarro, no qual são apresentadas as
modificações nas vivências do sexo e do amor, desde a pré-história até a
atualidade, deparo-me, sobretudo a partir do século XIX, com a presença frequente
de um ou outro meio técnico de comunicação a mediar as relações amorosas. E da
mesma forma como as mentalidades sobre o sentimento amoroso experimentaram
mudanças ao longo da história da humanidade, também mudaram os modos de
interação dos apaixonados.
A
segunda revolução industrial trouxe mudanças práticas, mas também subjectivas para a vida quotidiana. O advento
e rápido desenvolvimento dos meios técnicos de comunicação e dos sistemas de
transporte foram fatores que interferiram nas formas de expressar o amor, alterando progressivamente os fluxos e dinâmicas dos
relacionamentos sociais e também das interações amorosas: com os correios
dinamizou-se a troca de mensagens românticas, os encontros marcados, os
envios de retratos com dedicatórias, cartas e postais de amor; com a
popularização do telefone foi possível levar a voz do ser amado para pertinho
do travesseiro (por que não toca o telefone?); o automóvel servia de ninho do
amor, “um pecado sobre rodas”; o escurinho das salas de cinema, ambientado
pelos beijos, lágrimas e juras de amor eterno do cinema Hollywoodiano, servia
de palco para as cálidas carícias dos namorados; hoje, os mais expressivos meios de
interação encontram-se nos ambientes virtuais, como e-mails, chats, facebook, twitter,
skype, etc. Desde os últimos anos do século XX, muitos foram os casos de amor
que começaram, avançaram ou terminaram no ciberespaço.
O amor é tecnicamente mediado, das longas cartas românticas aos 160 caracteres do SMS. E se as cartas de amor estão vincadas no imaginário romântico do
século XIX até meados do século XX (dos filósofos aos generais, das ingénuas jovens burguesas às meretrizes, não há personagem real ou ficcional que não tenha
escrito uma – ridícula – carta de amor), no século XXI, a revolução tecnológica
digital nos abre novas possibilidades para a vivência amorosa e cria um novo
léxico para o amor.
***
Carta de Fernando Pessoa à Ophélia:
Terrivel Bébé
Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim .
Cartas de Amor, Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa, Ática, 1978 (3ª ed. 1994)