Ao falar do seu espanto diante da
fotografia na qual vê « os olhos que viram o Imperador », Barthes revela o seu
incômodo interesse e atração diante de certas imagens fotográficas, declarando a
sua angústia em querer « uma história dos olhares », fundamentada, sobretudo, no interesse
particular de quem olha. O autor coloca-se, então, diante das fotografias com
olhar desarmado para observar, refletir, interpretar e quem sabe desvendar o
que está aquém e além da imagem.
Com
alguma frequência tenho vivido, eu própria, este tipo de atração inexplicável
por certas fotografias. Refiro-me aqui precisamente a este interesse que
« punge e mortifica », como caracterizou Barthes.
A minha mais
recente obsessão trata-se, particularmente, de uma fotografia encontrada no
Museu da Imagem de Braga, durante uma de minhas expedições em busca de tesouros
perdidos nos baús do tempo. Em meio a uma série com pouco mais de uma
dúzia de fotografias, um sorriso fisgou-me o olhar – seria o que Barthes
chama de punctum.
Esta série de
fotografias retrata cenas de um casamento vulgar. Em um dia qualquer entre os
finais dos anos de 1960 e os primeiros anos de 1970, numa igreja qualquer dos arredores de Braga, um jovem casal celebra o matrimônio. A
noiva (de sorriso meio ausente) não era uma princesa. O noivo não veio num
cavalo branco. Os convidados não eram ilustres. O carro que levou os noivos não era uma limousine. A casa na qual viveriam não era um castelo. O cenário
é campestre, rústico, sem pompa. A cena é humilde.
É esse o aspecto visual capaz de despertar o interesse geral e
diversificado sobre esta imagem. Ou seja, o que Barthes nomeia de studium, e que provém de um investimento
consciente para situar informações históricas e culturais que nos habilitem a
interpretar e contextualizar a imagem, sentindo-nos comovidos ou não por esta:
« Gosto. Não gosto ».
A minha comoção
afetiva por esta narrativa deu-se pelo conjunto como um todo. E esta comoção
não vem da admiração pela estética das fotos, ou de um interesse
antropológico pelo assunto retratado, ou do ineditismo do
olhar do fotógrafo sobre este tipo de evento. O que me sequestra, é o ar de
celebração que deixa muito evidente um esforço para adequar-se a padrões
rituais dominantes, e ao mesmo tempo uma ambientação muito familiar, ordinária, que apenas
ensaiava a formalidade destas cerimônias. « Gosto ».
Dentre o conjunto de clichês, senti-me
particularmente interessada por uma foto, por um sorriso. Mas por quê? De tanto observar, percebi
que o que fisgava-me naquele sorriso comungava com um olhar que não parecia exatamente sorrir. Era algo entre o amor e a compaixão que o pai dirigia à filha, a jovem Sra.
Fulana de Tal.
O que
sei desta foto é o que vejo. Entre a ficção e a realidade, construo o meu
relato. Não fiz sobre este conjunto de clichês qualquer pesquisa
aprofundada, não o analisei formalmente, não esmiucei em grelhas os pormenores. Mas foi de
tanto olhar que entendi « o meu espanto diante dos olhos que sabem o
porque daquele sorriso ».
2 comentários:
Bela percepção, a sua!
Fui fisgada pela postura da mãe (que olhar era aquele...) Talvez seja pelo que se passa comigo, entre-olhares meio vagos, taciturnos, reflexivos ou a tentar adivinhar uma existencia futura ( também uma ausência, passado...).
...
Ah! O Barthes, sempre Barthes - Sempre a estudar os discursos: pequenos, imagéticos , textuais..
saudades, minha amiga
Lisa.
Segundo Dubois, olhar para um imagem é sempre olhar para si mesmo. Quem sabe ele não tenha razão...
Enviar um comentário