14 de novembro de 2011

O punctum e um sorriso que flecha


Ao falar do seu espanto diante da fotografia na qual vê « os olhos que viram o Imperador », Barthes revela o seu incômodo interesse e atração diante de certas imagens fotográficas, declarando a sua angústia em querer « uma história dos olhares », fundamentada, sobretudo, no interesse particular de quem olha. O autor coloca-se, então, diante das fotografias com olhar desarmado para observar, refletir, interpretar e quem sabe desvendar o que está aquém e além da imagem.
     Com alguma frequência tenho vivido, eu própria, este tipo de atração inexplicável por certas fotografias. Refiro-me aqui precisamente a este interesse que « punge e mortifica », como caracterizou Barthes.
A minha mais recente obsessão trata-se, particularmente, de uma fotografia encontrada no Museu da Imagem de Braga, durante uma de minhas expedições em busca de tesouros perdidos nos baús do tempo. Em meio a uma série com pouco mais de uma dúzia de fotografias, um sorriso fisgou-me o olhar – seria o que Barthes chama de punctum.
Esta série de fotografias retrata cenas de um casamento vulgar. Em um dia qualquer entre os finais dos anos de 1960 e os primeiros anos de 1970, numa igreja qualquer dos arredores de Braga, um jovem casal celebra o matrimônio. A noiva (de sorriso meio ausente) não era uma princesa. O noivo não veio num cavalo branco. Os convidados não eram ilustres. O carro que levou os noivos não era uma limousine. A casa na qual viveriam não era um castelo. O cenário é campestre, rústico, sem pompa. A cena é humilde.
É esse o aspecto visual capaz de despertar o interesse geral e diversificado sobre esta imagem. Ou seja, o que Barthes nomeia de studium, e que provém de um investimento consciente para situar informações históricas e culturais que nos habilitem a interpretar e contextualizar a imagem, sentindo-nos comovidos ou não por esta: « Gosto. Não gosto ».
A minha comoção afetiva por esta narrativa deu-se pelo conjunto como um todo. E esta comoção não vem da admiração pela estética das fotos, ou de um interesse antropológico pelo assunto retratado, ou do ineditismo do olhar do fotógrafo sobre este tipo de evento. O que me sequestra, é o ar de celebração que deixa muito evidente um esforço para adequar-se a padrões rituais dominantes, e ao mesmo tempo uma ambientação muito familiar, ordinária, que apenas ensaiava a formalidade destas cerimônias.  « Gosto ».
Dentre o conjunto de clichês, senti-me particularmente interessada por uma foto, por um sorriso.  Mas por quê? De tanto observar, percebi que o que fisgava-me naquele sorriso  comungava com um olhar que não parecia exatamente sorrir. Era algo entre o amor e a compaixão que o pai dirigia à filha, a jovem Sra. Fulana de Tal.
            O que sei desta foto é o que vejo. Entre a ficção e a realidade, construo o meu relato. Não fiz sobre este conjunto de clichês qualquer pesquisa aprofundada, não o analisei formalmente, não esmiucei em grelhas os pormenores. Mas foi de tanto olhar que entendi « o meu espanto diante dos olhos que sabem o porque daquele sorriso ».






 * Barthes, Roland (1984) A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

2 comentários:

Lisa Valéria disse...

Bela percepção, a sua!
Fui fisgada pela postura da mãe (que olhar era aquele...) Talvez seja pelo que se passa comigo, entre-olhares meio vagos, taciturnos, reflexivos ou a tentar adivinhar uma existencia futura ( também uma ausência, passado...).
...

Ah! O Barthes, sempre Barthes - Sempre a estudar os discursos: pequenos, imagéticos , textuais..

saudades, minha amiga
Lisa.

Unknown disse...

Segundo Dubois, olhar para um imagem é sempre olhar para si mesmo. Quem sabe ele não tenha razão...