O Popular, Domingo, 27 de Novembro de 2011. |
Foi publicada ontem no jornal O Popular, Goiás, Brasil, a entrevista que concedi ao jornalista Rogério Borges para uma reportagem que aborda comportamento e identidades a partir do filme "A pele que habito", de Almodóvar. Assisti ao filme logo que entrou em cartaz aqui nas salas de cinema de Braga e saí da sessão cheia de inquietações, então esta foi uma boa oportunidade para retomar as ressonâncias do filme. Infelizmente a reportagem na versão online somente pode ser lida na íntegra por quem é assinante do jornal, mas a entrevista disponibilizo logo abaixo para quem se interessar:
RB - Dentro da cultura visual, como se trabalha o conceito de
identidade? Ele é possível em um campo tão dinâmico?
AS - A discussão sobre a identidade é transdisciplinar, como, aliás, é o próprio campo da cultura visual. O conceito de identidade é complexo e fluido, sobretudo na contemporaneidade, e desde a década de 1990 é extensamente discutido pelos teóricos das ciências sociais, e também das ciências psi. O que a atual conjuntura social nos leva a debater, num ambiente instável que tem a sua paisagem desestruturada e fragmentada pelo contínuo e profundo estado de mudança da esfera cultural e tecnológica, isso em termos globais, é justamente a impossibilidade de um sujeito integral, fixo, estável e coerente, segundo as normas sociais hegemônicas, dos gêneros, das sexualidades, das etnias e das classes sociais. Ou seja, dos elementos-chave que compõem as identidades. E é este cenário, um tanto caótico, que instaura a chamada “crise de identidade”, e há quem fale mesmo de um “colapso das identidades”. Daí a impossibilidade de se falar de uma identidade, discutimos as identidades no plural. Os indivíduos têm hoje as suas identidades fragmentadas, multifacetadas e, muitas vezes “incoerentes”.
AS - A discussão sobre a identidade é transdisciplinar, como, aliás, é o próprio campo da cultura visual. O conceito de identidade é complexo e fluido, sobretudo na contemporaneidade, e desde a década de 1990 é extensamente discutido pelos teóricos das ciências sociais, e também das ciências psi. O que a atual conjuntura social nos leva a debater, num ambiente instável que tem a sua paisagem desestruturada e fragmentada pelo contínuo e profundo estado de mudança da esfera cultural e tecnológica, isso em termos globais, é justamente a impossibilidade de um sujeito integral, fixo, estável e coerente, segundo as normas sociais hegemônicas, dos gêneros, das sexualidades, das etnias e das classes sociais. Ou seja, dos elementos-chave que compõem as identidades. E é este cenário, um tanto caótico, que instaura a chamada “crise de identidade”, e há quem fale mesmo de um “colapso das identidades”. Daí a impossibilidade de se falar de uma identidade, discutimos as identidades no plural. Os indivíduos têm hoje as suas identidades fragmentadas, multifacetadas e, muitas vezes “incoerentes”.
RB - Vivemos um mundo absolutamente visual, com um número incrível de
informações que nos chegam o tempo todo, ininterruptamente. Como formar uma
identidade em um turbilhão desses?
AS - A palavra identidade
pressupõe a ideia de identificação, ou seja, identificar-se e ser identificado,
inclusive ou sobretudo, visualmente. As identidades são construídas a partir de
discursos verbais e visuais que nos “recrutam” como sujeitos, ou seja, a partir
de aspectos culturais que partilhamos e com os quais nos identificamos, ou
somos levados a nos identificar, pelo valor simbólico que carregam cultural e
socialmente. Mas a identidade é construída também a partir da diferença, assim
eu também me identifico pelo que eu não sou, ou pelo que eu não quero parecer
ser. E isto definimos a partir da nossa experiência de vida e da nossa relação
com o outro, com o mundo e com as coisas do mundo. O que acontece é que na
contemporaneidade, com a revolução tecno-cultural que vivemos, há uma mudança
muito rápida e contínua das nossas referências e do que parece prestigioso. Os
nossos ícones culturais são instáveis, e são, eles mesmos, mutantes. Talvez a célebre
frase de Marx de que “tudo que é sólido se desmancha no ar” nunca tenha calhado
tão bem. De fato, hoje a imagem é rainha, o visível e o aparente parecem ser soberanos,
têm uma dimensão singular e muito grande na cultura atual. Quando interagimos
virtualmente somos primeiro imagem, somos uma foto de perfil nas redes sociais,
um avatar, etc. Quando chegamos a um lugar, somos uma imagem corporal cheia de
significados que carregamos na roupa, no corte de cabelo, nos adereços, etc. Construímos,
portanto, as nossas identidades a partir também do que consumimos em termos materiais
e subjetivos, como um mosaico, uma bricolagem. E hoje há uma gama infindável de
possibilidades e discursos que podem nos recrutar.
RB - As redes sociais parecem
subverter noções identitárias, já que grupos se misturam, perfis falsos são
criados, há uma volatilidade grande em como as pessoas se apresentam às outras.
Qual a sua opinião sobre essas ferramentas de interação no que tange à
identidade?
AS - Há uma intencionalidade no modo como construímos as
nossas identidades e exprimimo-nos nos diferentes ambientes sociais em que
transitamos on e offline. E, entretanto, há a subjetividade de quem interage
conosco, por isso é um movimento de mão dupla. O que penso é que pode haver,
por um lado, uma tentativa de construir um continuum
na vida online do que é a vida offline, e por outro lado, uma transgressão,
em maior ou em menor medida, que pode ir desde criar um perfil totalmente fake nas redes sociais e que possibilite
ao indivíduo se expressar e se relacionar de uma maneira completamente diferente
do que ele costuma fazer na vida offline, até simplesmente ocultar ou ficcionalizar
algumas das suas informações pessoais. O que não rompe necessariamente com o
nosso comportamento offline, pois dependendo do ambiente em que nos
encontramos, nos comportamos de uma ou outra maneira. Ou seja, trocamos de
papel constantemente no teatro da vida cotidiana. Usamos uma ou outra máscara
social de acordo com o que nos convém. E podemos fazer isso também nas redes
sociais. De repente, numa determinada comunidade virtual, uma pessoa se sente
livre, devido à possibilidade de anonimato, para manifestar a sua homofobia sem
ser contestada ou recriminada pelo grupo social do qual participa no mundo “real”.
Contudo, não creio que haja, nas redes sociais, uma subversão identitária
discrepante do que há no mundo offline, apenas a virtualidade nos oferece
outras ferramentas, mais amplas e plurais.
RB - Há algo que pode ser
considerado idêntico a outro? Uma identidade absoluta é possível na
contemporaneidade?
AS - Eu não consigo imaginar o que seria uma identidade absoluta. Concordo
com os autores que acreditam que as identidades hoje são obras em constante e
infindável reconfiguração, reconstrução. E quando falamos em construir, revelamos
o caráter artificial das identidades para desestabilizar o discurso
naturalizante dos corpos, dos gêneros, das sexualidades, das etnias, etc. Ou
seja, tiramos a base do que poderia conferir algum tipo de estabilidade que
legitimaria a fixidez e rigidez que uma suposta “identidade absoluta”
precisaria para existir.
RB - Quanto a ter uma
identidade, as pessoas estão mais livres ou mais inseguras em suas escolhas?
AS - Creio que a liberdade gera insegurança, no sentido de que, se
temos possibilidades plurais, logo temos
mais elementos aos quais podemos recorrer para construir as nossas identidades.
Mas isso não parece ser um problema na medida em que as identidades são
constantemente reinventadas. Assim, estou habilitado para reconfigurar-me. E
isso talvez seja o que cause certo embaralhamento.
RB - O filme de Almodóvar
debate a permanência ou não de uma identidade mesmo quando o que é aparente na
pessoa muda radicalmente. Qual a sua opinião sobre isso?
AS - “A pele que habito” é
provocante porque aponta, numa perspectiva, para os dualismos e binariedades clássicas
das idéias naturalizantes do corpo, dos gêneros e das sexualidades: interior/
exterior, corpo/ alma, masculino/ feminino, beleza/ mostruosidade, mas ao mesmo
tempo fragiliza estas noções, quando revela a artificialidade desses dualismos
com a possibilidade de uma total reconstrução material e subjetiva. O filme de
Almodóvar enfatiza a reconstrução material do corpo, daquilo que é visível, e
nos faz pensar num corpo que aprisiona. No entanto, os aspectos subjetivos são
materializáveis, por exemplo, no modo de andar e numa gestualidade “delicada”, tipicamente
“feminina”, que não é natural, mas que se aprende culturalmente. O corpo é a
maneira de atestar a nossa presença in
loco, é a nossa forma de participar no mundo, por isso as mudanças e transformações
corporais ganham tamanha notoriedade na nossa cultura: mutatis mutandis, ou muda-se o que precisa ser mudado para que o
impacto da nossa presença seja o que desejamos, de acordo com o que conforma as
nossas idiossincrasias. É o que leva uma jovem de 22 anos a injetar botox nos lábios para ficar parecida com
a Jéssica Rabbit, ou colocar silicone nos seios, ou tingir os cabelos, ou tirar
algumas costelas para ficar com a
cintura mais fina, ou ir à academia de ginástica, ou fazer uma tatuagem,
ou consumir drogas para emagracer, etc. Da mais drástica até a mais sutil prática, estamos falando de body modification, ou de estratégias que
partem de um desejo que é subjetivo e que surge a partir de aspectos culturais
que são partilhados, mas que se materializam no corpo.
É claro que o filme tem um
interesse narrativo que trespassa estas discussões, é uma obra ficcional com
uma assinatura autoral, mas nos desperta este tipo de reflexão de uma maneira
inquietante, e nos faz mesmo questionar sobre a pele que habitamos ou sob a
qual nos abrigamos. Até que ponto esta pele nos aprisiona ou nos liberta, ou
nos deixa confortáveis?
RB - Fui informado que você também trabalha questões
relacionadas a transexuais. Nesses casos, como é lidar com uma identidade
quando o gênero muda? Como se dá essa transição?
AS - A experiência que “A pele
que habito” nos mostra é inversa a algumas experiências transexuais. No filme,
um jovem homem tem, involuntariamente, o seu corpo transformado num corpo de
mulher, e este corpo o aprisiona. Na experiência transexual, o movimento é
contrário, seria uma mulher que nasce aprisionada num corpo masculino ou um
homem que nasce aprisionado num corpo feminino, e em muitos casos, os sujeitos
transexuais sentem a necessidade de estabelecer uma coerência entre a identidade de gênero e a anatomia corporal. A idéia de gênero em si é uma construção cultural, não há
nada de natural na noção de gênero, ou de masculino e feminino. Não há nada na
natureza que diga que uma mulher deve sentar-se no vaso sanitário quando
precisa aliviar as suas urgências, ou que diga o tipo de roupa ou o corte de
cabelo que uma mulher deva usar para ser reconhecida socialmente como mulher. Assim,
uma mulher reconstrói e reafirma diariamente a sua identidade de gênero
feminina quando usa uma saia, quando passa um batom, ou incorpora qualquer elemento que seja reconhecidamente "feminino". Então o movimento que
os sujeitos transgêneros fazem é de reformulação, reconfiguração do gênero, do
masculino para o feminino ou do feminino para o masculino, utilizando-se dos
mesmos artifícios materiais e simbólicos disponíveis em nossa cultura.
2 comentários:
Obrigada! Vou guardar para ler e correr para o cinema: como sempre, nos "grandes filmes" as opiniões são muito contraditórias. Já ouvi quem disse ter amado, e odiado!
P.S: Estás linda na foto!!!
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